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sábado, 10 de abril de 2010

A mumificação no Antigo Egipto

Os Egípcios concebiam o ser humano como um complexo composto de elementos indissociáveis entre si, designados como Kheperu, ou seja, “manifestações”. Estes elementos correspondem a aspectos materiais e imateriais da existência humana – o corpo físico, o coração, o ka, o ba, o nome e a sombra – estabelecidos desde a primeira vez, isto é, no momento da criação. A morte conduzia a um novo estado biológico, passando o indivíduo a ser designado como akh, ou “transfigurado”. Este novo estado é caracterizado pela separação dos vários elementos que constituem o indivíduo, sendo cada um capaz de manter uma existência independente na eternidade.
Concebiam o coração e não o cérebro enquanto centro do intelecto e da memória. Enquanto receptáculo do registo de vida do indivíduo, este órgão assumia uma importância primordial no julgamento do morto que decorria no tribunal presidido por Osíris, deus dos mortos. Nas ilustrações do Livro dos Mortos relativas a este episódio vemos o coração a ser pesado no prato direito de uma balança, contendo o prato esquerdo uma pluma de avestruz, símbolo de Maat, divindade ou noção abstracta . O resultado desta pesagem era determinante para a admissão do defunto no Além. Aquele que tinha vivido de acordo com Maat era considerado maat-kheru, “justo de voz” e acompanhado à sua última morada, aquele que não era considerado puro era devorado por um ser compósito de nome Ammut. Para evitar que o seu coração comprometesse este acesso, o defunto tinha que ser conhecedor da fórmula 30B do Livro dos Mortos: “Ó meu coração da minha mãe, (...) víscera do coração das minhas diferentes idades, não te levantes contra mim em testemunho, não te oponhas a mim em tribunal, não mostres hostilidade contra mim na presença do guarda da balança (...)”

O ka ou duplo do indivíduo consiste numa reserva de força vital e de energia. Enquanto elemento imaterial não possuía uma contrapartida física, pelo que lhe era atribuída substância através da sua representação na forma de estátua, esta servindo como morada. Estava associado à subsistência do indivíduo após a morte, possibilitando um acesso às oferendas de alimento colocadas ou representadas nas capelas dos túmulos. O ka habitava o corpo mumificado na câmara funerária e deslocava-se desta para a câmara de oferendas onde habitava uma estátua no decurso do processo de alimentação.

Outro elemento primordial era o ba, frequentemente representado como um ser híbrido com corpo de ave, cabeça humana e mãos e braços humanos, sobrevoando o túmulo ou o corpo do defunto. Encontra-se particularmente associado à mobilidade do morto no Além, permitindo que este viaje para o mundo dos vivos ou ascenda aos céus e navegue com o deus solar na sua barca. Apesar da importância que assumia a mobilidade do ba, era fundamental que este voltasse regularmente ao corpo e se reunisse com este.

A distinção entre ba e corpo nada deve à dualidade corpo/alma defendida pelos filósofos platónicos ou mesmo proveniente de uma certa tradição cristã, onde a sobrevivência na eternidade era destinada apenas à alma e ao corpo restava unicamente a destruição (Dunand; Lichtenberg, 2002: 41). Contrariamente, para os egípcios antigos era necessária a preservação e união de todos os elementos constituintes do indivíduo, sendo esta uma condição necessária à sobrevivência do defunto no Além, desta forma, evitando a temível segunda morte, concebida pelos egípcios antigos como definitiva. Esta noção surge como antítese à visão da morte como uma etapa num processo continuado, ou seja, uma concepção da morte como uma passagem para um novo estádio de existência, onde o morto é integrado num «padrão cíclico do universo», envolvendo um contínuo renascimento este muitas vezes aludido através de uma comparação com o ciclo incessante do nascer e pôr-do-sol

A preservação do corpo era fundamental, sendo necessária para a sobrevivência dos elementos imateriais, ka e ba. Pascal Vernus sublinha a necessidade de preservação do elemento material incorruptível: «le corps n’est pas une enveloppe ou une gangue dont il faudrait se libérer, mais une manifestation solidaire de toutes les autres manifestations possibles à travers lesquelles on échappe à l’anéantissement. Il faut donc à tout prix en préserver l’intégrité menacée par la mort»

As alusões na literatura funerária ao desmembramento do corpo e á necessidade da sua restituição fazem eco do mito de Osíris. Divindade que após ter sido morto e seu corpo desmembrado ressuscita tornando-se o rei dos mortos. Osíris assume uma importância primordial no panteão egípcio sobretudo a partir do Império Novo, período onde assume a forma que apresentará no Período Romano, de onde nos chega a célebre obra de Plutarco, De Iside et Osiride, a versão mais completa do mito. Ísis assume um grande protagonismo na ressurreição de seu esposo, é ela que reúne os membros mutilados e juntamente com outras divindades realiza um ritual de enterro condigno. De destacar a participação de Anúbis no embalsamamento do corpo do rei morto, divindade que surge representada com cabeça de chacal e que se tornará no patrono da mumificação. Enquanto primeira múmia, Osíris torna-se um modelo a seguir, sendo a preservação do corpo fundamental no acesso à via de salvação osírica, isto é, na passagem para a eternidade e conquista do Reino dos Ocidentais. A múmia tornava-se um potencial Osíris, sendo a prática da mumificação responsável pela passagem do indivíduo para uma etapa superior da hierarquia dos seres.

Além da preservação do corpo era ainda necessário restaurar o uso dos sentidos, tornando possível o seu uso pela eternidade. A restauração das faculdades sensoriais era possível através da cerimónia da «abertura da boca», realizada pelos sacerdotes sobre o corpo mumificado ou o sarcófago que o protegia, através da manipulação de uma série de instrumentos carregados de simbolismo e de magia. Com os instrumentos tocavam a boca, nariz, olhos e orelhas, permitindo que o defunto pudesse realizar funções vitais como respirar e comer no Além.

As fontes para o processo de mumificação realizado no antigo Egipto são escassas, testemunhando uma certa relutância em referir uma prática que apesar de tudo envolvia a corrupção do corpo. O texto Ritual de Embalsamamento , essencialmente de natureza religiosa, apresenta um relato da aplicação de unguentos, colocação de tiras de linho no corpo e aplicação de amuletos, sendo omitida a referência aos detalhes do processo de embalsamamento propriamente dito. O Papiro Mágico Rhind datado de c.200 a.C. também apresenta uma referência ao processo muito breve, relatando a unção e colocação das tiras de linho no corpo. Datado da XXVI dinastia, do Período Tardio, o Papiro Ápis, apresenta uma descrição da prática de embalsamamento do boi sagrado Ápis venerado em Mênfis.

As descrições mais completas e detalhadas são as provenientes das obras dos autores clássicos Heródoto e Diodoro de Sicília, que apresentam muita informação não encontrada em qualquer outra fonte documental, todavia, os relatos são confirmados actualmente pela análise das múmias que sobreviveram. Heródoto, oriundo de Halicarnasso na Ásia Menor, visitou o Egipto c. 450 a.C. durante o domínio Persa. Apresenta uma descrição pormenorizada do processo de mumificação na sua obra de nove volumes intitulada História. Apesar das dúvidas que a sua descrição suscita esta é considerada a mais importante fonte escrita relativa à mumificação. Diodoro proveniente de Sicília visita o Egipto alguns séculos mais tarde, mais concretamente no I século a.C. Além das fontes textuais, as representações artísticas deste processo são extremamente raras. Muitas capelas de túmulos possuem representações das várias etapas do ritual de enterro, contudo, a mumificação apesar de ser parte integrante deste cerimonial nunca surge de uma forma explícita, sendo frequentemente representada de uma forma simbólica através da imagem do deus Anúbis junto a um corpo mumificado ou a um sarcófago.

O termo embalsamamento deriva do Latim in balsamum, com o significado de preservação pelo bálsamo, aplicado na realidade. A palavra persa mummia possui o significado betume, termo aplicado num Período Tardio aos corpos mumificados que apresentavam uma coloração negra parecendo que tinham sido embebidos em betume. Todavia, o betume não foi utilizado no processo de mumificação, com excepção para uma múmia do Período Tardio que possuía vestígios de utilização desta substância, prática não confirmada em análises a outras múmias datadas do mesmo período
Lucas; Harris,1999